Afeganistão: O que muda no tabuleiro geopolítico com o retorno do Talibã ao poder?
Estrategicamente importante nas rotas comerciais da Ásia, o Afeganistão é hoje, após a tomada de poder pelo Talibã, palco para a movimentação de grandes atores globais
No Afeganistão, uma região de conflitos históricos, pragmatismo e um compasso de espera devem determinar o tom nas relações diplomáticas e comerciais no curto prazo. Construir uma ponte com o Talibã vai requerer muita atenção no tabuleiro geopolítico e análise profunda das consequências futuras.
Sinval Santos, mestre em Ciências Humanas, coordenador de área e professor de geografia do Colégio Mater Amabilis, avalia que este ainda é um momento de incertezas e alta sensibilidade. “Embora o grupo extremista tente se apresentar como mais moderado do que historicamente
é conhecido, desde que retomou o controle neste último mês de agosto de 2021, há uma forte apreensão de que seu retorno ao poder traga novamente violação aos direitos humanos da população local. No contexto global, a saída já prevista dos Estados Unidos da região representou, para muitos, despreparo, falta de interesse e uma derrota após 20 anos de ocupação militar no país na tentativa de apoiar um processo democrático. Também sinaliza um possível avanço da China – com outros atores em jogo, como a Rússia – nas relações comerciais e de influência na Ásia.”
O que é o Talibã?
Talibã significa “estudantes” em pashto (uma das línguas faladas no Afeganistão). É um grupo extremista de orientação sunita – formado em 1994 por ex-combatentes da jihad (guerra santa) –, que defende o funcionamento do Estado baseado em sua interpretação da Sharia, sistema de leis derivadas do Corão (livro sagrado dos muçulmanos).
Após uma década de conflitos no Afeganistão (1979-1989), em meio à Guerra Fria, as tropas da União Soviética ali instaladas foram derrotadas por um grupo radical financiado pelos Estados Unidos – o Talibã, que aproveitou a fragilidade da ocasião com a saída dos russos e, poucos anos depois, tomou o controle do país. Governou de forma rígida e totalitária de 1996 a 2001, quando o regime foi derrubado por forças americanas que invadiram a região, em resposta aos ataques da
Al-Qaeda aos Estados Unidos no dia 11 de setembro. Os americanos acreditavam que o Talibã, grupo que patrocinou no passado, dava apoio e abrigo a Osama Bin Laden, líder da organização terrorista e seu inimigo n0 1.
Queda e ascensão
Durante a fase de transição para um governo afegão sob padrões democráticos, com a entrada dos Estados Unidos em 2001, o Talibã não se rendeu, contudo ficou enfraquecido e se refugiou em áreas montanhosas de difícil acesso ou fora do país. O Afeganistão promulgou sua constituição em janeiro de 2004 e, em setembro de 2005, ocorreu a primeira eleição presidencial marcada pela participação feminina, sendo as mulheres quase metade dos eleitores.
Com a morte do líder da Al-Qaeda em 2011, foram estipulados prazos para a saída dos militares americanos do Afeganistão, no governo de Barack Obama. Em 2020, no âmbito das negociações de paz em Doha (Qatar), o presidente estadunidense Donald Trump assinou um acordo com o Talibã para a retirada das tropas em 14 meses. E, em abril de 2021, Joe Biden, atual presidente norte-americano, comprometeu-se com a saída total dos soldados, entre maio e setembro.
O Talibã não esperou o prazo vencer. Em 15 de agosto, tomou a capital Cabul e voltou ao poder após 20 anos, com a derrubada do presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani. O líder supremo do Talibã, Mawlawi Hibatullah Akhundzada, passou a ser o emir do Emirado Islâmico do Afeganistão.
“A China foi a primeira a reconhecer e a se aproximar da liderança talibã, já que o Afeganistão ocupa localização estratégica para a expansão das linhas comerciais da nova rota da seda (o Cinturão).
A saída americana, além de implicações na geopolítica regional, pode fortalecer alianças
globais futuras, delineando novos contornos entre potências e áreas de influência”, comenta Sinval, que lança luz sobre o tema e promove o debate em torno de panoramas e conjunturas com os alunos do Mater Amabilis.
Enquanto as relações de outros países ocidentais com o Afeganistão são marcadas pelo setor de segurança e militar, o Brasil tem uma ligação comercial pela agricultura, vinda do Acordo Básico de Cooperação Técnica (ACT), de 2006. Embora o comércio não seja significativo entre os dois países, o Brasil tem interesse na pacificação da área por suas exportações para o Oriente Médio e a Ásia.
Direitos Humanos e empoderamento feminino sob nova ameaça
Nos anos em que estiveram no poder, entre 1996 e 2001, os talibãs fizeram uma interpretação rígida da sharia, lei islâmica baseada no Corão, e não permitiam que as mulheres estudassem ou trabalhassem. Confinadas em casa, só podiam sair se estivessem acompanhadas de um homem e com o uso obrigatório da burca, vestimenta que cobre todo o corpo e deixa apenas os olhos à mostra por uma rede no tecido.
Na época, o Talibã erradicou todo tipo de expressão cultural, com a proibição de música, filmes, televisão e livros. A Biblioteca Central de Cabul foi queimada e, na antiga rota da seda, artefatos históricos acabaram destruídos, a exemplo dos Budas de Bamiyan, construídos no século 5.
Execuções públicas, apedrejamentos e castigos físicos eram praticados pelo grupo. Em outubro de 2012, tiros foram disparados contra Malala Yousafzai, por sair em defesa da educação das garotas, e, em 2014, houve o atentado contra uma escola em Peshawar (território paquistanês).
“Há uma preocupação da comunidade internacional e das organizações humanitárias, que acompanham os desdobramentos da invasão do Talibã. Porém, neste compasso de espera,
é muito importante a conscientização de que o grupo extremista faz uma leitura radical dos princípios do Islã para governar. Não é o Islã que oprime a população, mas sim a forma com que este grupo costuma exercer o seu poder. Compreender isso é combater toda e qualquer prática de xenofobia ou intolerância religiosa”, esclarece Sinval.
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